Complementou a pergunta de forma quase imediata:
-E também foste para a rua e puseste cravos nas armas?
Não filho, não fui para a rua pelas razões que viste na televisão. Aliás, o meu mundo nessa altura estava bem distante, em todos os aspectos.
Tinha saído de casa para o Liceu Nacional Salazar na minha Mini Yamaha azul, bem cedo como se usa em África. As aulas deveriam acabar antes da hora em que o calor aperta realmente. Banguei até aos madiés que estavam à minha espera. Companhia de aventuras mil em terra sem televisão, terra de inventar e de soluções encontradas das formas mais originais.
Aí disseram:
-Sabes que estão a rebentar um golpe de estado lá no "puto"?
-Ué! Golpe de estado? Q'éssa coisa? Tás a dizer quê?
-Revolução, ué!
-Revoluquê??. Tás a gozar, meu!
-Sério, a tropa e quê, tão lá a atirar nos Tugas!
Bazei a dar-lhe gás até casa, para dar a novidade ao cota. E que novidade! Ligou a onda curta, que habitualmente me martirizava os domingos à tarde, com os relatos do Sporting, como se o Recreativo do Uíge não chegasse, nesta terra de 16.000 habitantes e de fronteira com a floresta virgem. No meio do ruído das ondulatórias (hoje sei isto) tentou perceber o que se passava. Ligou aos amigos e outros conhecidos recebeu inúmeros telefonemas (imagino a operadora do PBX da cidade louca a cravar cavilhas, a tentar escutar as conversas e manter-se a par da vida pessoal de cada um e de todos) e daí seguiu-se o dia quase normal, excepto o facto de as notícias e os telefones ocuparem a quase totalidade dos tempos livres.
- Aprendi nesse dia várias palavras novas, meu filho! Eu que sempre adorei palavras novas, introduzi, no meu vocabulário, pelo menos estas, tiradas dos diálogos que a custo ia entendendo e tentando perceber. Para mim, ainda não iriam ter um significado lógico e de porquês. Isso iria acontecer mais tarde. Revolução, Golpe de Estado e Independência.
Muitos cotas repetiam estas palavras, a rádio falava de governantes presos, gente na rua batia palmas a algumas notícias, outros pareciam preocupados. Mas nesse dia, pouco ou nada mudou nesta cidade pasmaceirenta que era o meu mundo 10 meses de cada ano.
Visitei a minha paixão, a garina com quem não tinha sequer trocado um beijo, mas que me alimentou a imaginação e o desejo pelo menos dois anos (nunca ganhei coragem para lhe dizer o quanto a queria ...). Aí sim, senti uma energia de alegria enorme, incontida. Percebi que nessa casa as pessoas estavam à espera deste dia, anciosos. Que mesmo ainda a medo, falavam de coisas novas que nunca, em dois anos anteriores, nos meio de jogos de canasta e crapôs, de convívio divertido, eu sequer teria imaginado. Percebi que existiam "os outros", pessoas que pensavam coisas que para mim não existiam até então. Percebi que o meu sentir de Angolano poderia ser mesmo, e que Angola poderia tornar-se aquilo que muitos chamavam nesse dia, a palavra que acabava de aprender, Independente, o que quer que isso sigificasse. Só sabia que não seríamos mais Portugueses mas sim, Angolanos, aquilo que sempre fui. Lá no "puto" era outra coisa, seria com "eles", mas que «muita coisa vai mudar, sem dúvida» era confirmado a cada passo e a cada conversa adicionada, escutada com atenção redobrada, razão da curiosidade por novas palavras e por novidades. Não entendi nada nesse dia. Quando tudo parecia claro, eis que uma nova conversa alterava tudo. O meu pai estava feliz:
-Finalmente, finalmente!
Foi assim nesse dia, sem "saídas para a rua" nem "pôr cravos nas armas". O meu mundo estava a 8.000Kms de distância e mesmo assim, iria alterar-se completamente nos tempos que se seguiriam.
Sempre te disse que sou "preto", que nasci "preto". Ainda hoje, tempos passados e experiências volvidas, ininterruptas, diferentes, em vários cantos de diversos continentes, tenho o meu coração ancorado lá, onde sempre me senti, me sinto em casa, cada vez que retorno, cada vez que o avião se inunda dos cheiros e sensações tão familiares, tão naturais, tão de mim, cada vez que a porta se abre, especialmente nas madrugadas, depois da chuva que molhou a terra vermelha e esta nos entrega o melhor de si, o cheiro, o eterno cheiro de terra quente molhada!
Continuarei a contar-te, sempre que queiras, sempre que os nossos serões possam ser partilhados, inundados de histórias e contos, uns felizes, outros nem tanto, mas concerteza da minha vivência e experiência, sempre com emoção e talvez, no intervalo dos teus programas de televisão, dos jogos na PS2 e do skate. O que seria o meu carro de rolamentos, construído carinhosamente por mim, assento estofado, corda quase inquebrável, rolamentos usados retirados da oficina mais proxima, arco do eixo da frente aproveitado das tabuas das barricas de vinho vindas do "puto", comparados com tanta tecnologia que actualmente tens à tua disposição? Mas compreende, ou pelo menos tenta, eu construía os meus próprios brinquedos, envolvia-me e interessava-me pelos meus projectos e ideias.
O 25 de Abril tem a ver com envolver-mo-nos, com interessar-mo-nos pelos nossos próprios projectos, saber partilhar ideias de forma construtiva.
Pena que todos nos tenhamos esquecido disso! Pena, não participarmos! Pena, não nos envolvermos! Hoje, à distância que o tempo permite, seria esse o maior benefício do 25 de Abril.
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27 April 2007
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1 comment:
terna e alegórica envolvência.
memória do maior "afecto" : a generosidade.
Amei.
__________________palavras de sempre.
um beijo. M.
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